Tuesday, April 3, 2012

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Os olhos verdes. Olhos de insônia; de inocência mal dormida. O corpo que acompanhava os olhos era de menina, que se transformava em mulher. O batom, mais vermelho que o possível, cobria os lábios, na contradição invisível ao mundo, que se acostuma com crianças que ocupam funções adultas. Não havia sensualidade em sua infantilidade, mas as roupas que não cobriam todo o seu corpo atraíam a libido feroz dos desconhecidos. Era uma menina que buscava ser mulher no frio das madrugadas que atravessava em cima de um salto que cambaleava sob os seus pés.
Eu a via quase todas as noites, quando pisoteava o asfalto com meus sapatos velhos. Ora voltando de meus estudos, ora de meu trabalho. Ela estava sempre lá; era quase parte do cenário. Eu apertava o passo e buscava desviar o olhar, mas tenho cada detalhe de si guardado em minha mente. Aquele ar ingênuo e, principalmente, seus malditos olhos verdes. A cada vez que eu cruzava a sua esquina, pensava em parar, bater um papo. Saber algo além daquela contradição perturbadora. Pensava em dizer que lhe amava; que lhe queria bem.
Veja bem, era amor, e não pena, o que enchia os meus pulmões quando eu passava por ela. O olhar desviado era apenas para conter o embaraço de não saber começar um discurso. Na verdade, eu era invadida de medo de um amor não correspondido; de querer bem e me descobrir estorvo. Eu bem sei o quão agressivos nos tornamos quando o mundo morde, rasga, pisoteia. Machuca. E, às vezes, a dor é demais para nos mantermos meninas por dentro. Eu sentia que o seu corpo, assim como o meu, era apenas uma casca. Minha pele mentia a idade da minha alma; a dela, uma fragilidade que eu sentia já não existir.
Existiram noites em que ela não estava a guardar seu posto: a esquina anterior à quadra de minha morada. Muitas vezes, ela era um vulto que se movimentava dentro de um carro com as portas trancadas. Ela era o vulto que eu sabia se sufocar na libido alheia; com carne pulsante a provocar-lhe a garganta, enquanto ela se negava o prazer do vômito. Nesses dias, eu me sentia particularmente sozinha. Entrava em casa e olhava para o vento que cortava o meu rosto, que brotava para fora da janela. E dormia sem sonhos, da mesma forma que imagino que haviam de ser os seus.
Já mencionei seus cabelos? A criança-mulher possuía cabelos cor de lama. A poesia era nunca saber se estavam lavados ou não. Constantemente, a imaginava tomando banho na chuva da noite. Limpando, com a água mais pura, as máculas do que teimava em reviver, exatamente como uma criança que não cansa de assistir o mesmo filme. O seu, era impróprio para a própria idade e gravado em pele e alma, como tatuagem.
Esta noite, eu choro pelos seus olhos verdes; choro por nunca ter-lhe perguntado o nome ou revelado o amor que sentia. E sofro por não ter sido boa companhia nem mesmo no momento de sua morte, ainda tão fresca em minha mente.
Meus sapatos enlameados abriam espaço pelas poças d’água. Chovia fino, mas o vento a fazia parecer temporal. Eu atravessava a esquina anterior àquela que já era a sua casa e percebia a sua silhueta de menina e outra, bem mais alta, ao seu lado. Foi quando ouvi um trovão e o clarão iluminou-a. O homem gritava algo que eu não conseguia ouvir. Apertei o passo, me abrigando nas sombras das árvores da calçada. Estava a poucos metros do seu corpo quando avistei mais três raios em si. Parei. E entendi que trovões não possuíam aquele som oco. Paw, paw, paw. A vida já escoava de seu corpo, vermelha como deve ser, correndo com a chuva para o esgoto da rua. Os tiros continuaram. Covardes. Covardes como aqueles que espancam ou violentam recém nascidos. Então, ouvi uma voz embargada, como a minha está agora:
_ Viado filho da puta! – era mágoa em sua voz. Aquela mágoa que só se encontra em corações apaixonados. Ele pareceu ter despertado com o som da própria voz, e ter se afogado no sangue que ele mesmo derramou. Deixou a arma cair no chão e correu para a direção oposta.
Fiquei alguns momentos olhando os olhos verdes da minha menina, que cintilavam como o de um gato, em meio à noite escura. Eles estavam ingênuos, como sempre. E, desta vez, vazios. Mortos.
Desviei o olhar, como de costume, e voltei a pisotear as poças d’água. Mas, desta vez, mudada para sempre. Nunca mais engoliria seco um “eu te amo” preso na garganta.

1 comment:

  1. Como conter as lágrimas diante de um texto deste, que mexe em mim sentimentos tão distintos? A tua sutileza, subjetividade e sensibilidade são lindas...
    Obrigada por compartilhar este texto lindo...
    Jils

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