Monday, April 23, 2012

Lisa




A agulha da vitrola rebolava caprichosamente pelo disco de vinil, deixando escapar ruídos e o blues melancólico escondido por trás de todo som de contrabaixo. A música que ecoava pelo quarto era “love of my live”, do “Queen”. Lisa pensava em como as gravações digitais haviam preterido aquele som que lhe embalava tão perfeitamente. Olhou para a cama e pegou o laptop e o colocou sobre os joelhos, ainda sentada no chão. Acendeu um cigarro.

O cursor a desafiava, piscando solitário em um documento do word vazio. Havia meses desde que vencera a batalha contra a folha em branco, pela última vez. Sentia-se abandonada pelas palavras, suas velhas e únicas companheiras, desde sempre. Sorriu amarelo e se lembrou de quando ainda era pequena demais para escrever suas próprias histórias; de quando as inventava e contava para si própria, todas as noites, antes de adormecer na paz que só as crianças conhecem. Era a sua forma de fazê-las eternas. Como poderia ter perdido algo que parecia ser mais parte de si que o próprio corpo que a constituía?

Os pensamentos cessaram junto com o movimento da agulha, então Lisa se levantou e trocou o lado de seu LP. Pousou a agulha com a sutileza das nuvens, que bailam no céu azul em dias ensolarados, e voltou a recostar-se na parede gelada. Ela olhava fixo para a tela. Estava imóvel; hipnotizada. Que diabos havia mudado em si?

Olhou para o disco de vinil, quebrando o transe. E se pegou cantarolando uma das mais belas músicas que conhecia. Olhava as rotações, enquanto as notas eram arrancadas sutilmente pela agulha, firme e hesitante. E abandonou a obrigação dos parágrafos, sorriu sincero e acendeu um outro cigarro.

Os dedos de Lisa iam de encontro a sua boca e repousavam em sua coxa, amarelados pelo excesso de nicotina e escondidos pela nuvem de fumaça que a envolvia. Foi aí que percebeu que ela não estava só envolta nesta névoa, mas que cada silêncio que cantava junto à melodia de seu disco de vinil era poesia. A poesia que havia se escondido, na época em que ainda possuía tempo para inventar que era protagonista de seus contos de fada. E se sentiu no paraíso por poder ter uma hora e meia, perdidas na madrugada, para pensar e viver dentro de si. Então, ela tomou o computador ao colo e começou a relatar sua aventura, em terceira pessoa. 

Lisa sentiu uma lágrima seca em seu olho esquerdo, quando viu-se rodeada de palavras. A folha escrita até o fim, com qualquer coisa que começava com “A agulha da vitrola rebolava caprichosamente pelo disco de vinil...”. Só então, deitou-se para sonhar que era princesa em um mundo cinzento, em que tudo o que tocava, virava flores.

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